Por Elisabeth Zorgetz
Nesta sexta-feira, 31 de janeiro, as juventudes e os trabalhadores realizarão um ato público para comunicar a Greve Geral, que se constrói país afora em reação aos constantes ataques aos direitos fundamentais do trabalho e educação capitaneados pelo golpismo e seus arquitetos parlamentares. Neste bolsão ofensivo, coexistem projetos ora mais eloquentes, ora silenciosos, mas todos brutalmente perniciosos para a vida dos brasileiros e brasileiras. Entre eles, o PL 1875/2015, propõe facilitar a suspensão dos contratos de trabalho, conforme a necessidade patronal; o PL 5019/2009, sobre redução de jornadas com redução de salários com parcela mínima de justificação; o PL 948/2011, que questiona o direito às verbas rescisórias no caso de demissões sem justa causa; o PDC 1408/2013 e do PDS 43/2015 que suspende a NR-12 (Norma Regulamentadora número 12), que estabelece a obrigatoriedade de dispositivos básicos segurança do trabalho, o PL 6.840/201 da reforma do ensino médio, já aprovado; o PL 4.302 da terceirização, em contestação pelo STF, e enfim, a alteração do plano previdenciário de forma que a força de trabalho seja exaurida até seu esgotamento, sem oportunidade de descanso. Todo esse pacote vitimará os trabalhadores em geral, e enfim, toda a sociedade e a democracia, mas causarão um impacto ainda mais significativo sobre a vida das mulheres. Para entender como funciona esse desequilíbrio, farei uma breve retomada de um trabalho realizado no recorte da cidade de Ilhéus e suas relações entre trabalho e gênero.
Na compreensão de gênero enquanto uma categoria relacional e admitindo sua relevância para o projeto econômico capitalista, surpreende como a investigação histórica, no acesso às fontes, silencie pesadamente a participação de mulheres no mercado de trabalho regional. Silêncio esse que terá muito a dizer sobre a poderosa força que o patriarcado exercia sobre os trabalhadores. Até mesmo os traços da informalidade são escassos. A partir de então, começa a ficar mais nítida a poderosa força do patriarcado ilheense conjugado à precarização e subalternização das mulheres nas relações de trabalho locais. Sua condição de produtora e consumidora é severamente obliterada, o que destoa dos números nacionais.
A partir dos anos 80, o fenômeno mundial da flexibilização já em curso se combina à crise da lavoura cacaueira para deslocar a população da indústria para o setor terciário, de comércio e serviços, seguindo a tendência também na década seguinte. Para o último censo, no ano de 2016, de acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município de Ilhéus conta com uma população de 178.210 habitantes. Em 2010, ano que é utilizado como referência final da análise proposta naquele trabalho, Ilhéus possuía 184.236 habitantes. Na decomposição por gênero, a população era majoritariamente do sexo feminino, ou seja, em números absolutos eram 94.796 habitantes do gênero feminino e 89.440 do sexo masculino. Entre os anos de 2004 e 2014, os maiores contingentes de emprego formal pertenciam aos seguintes setores de atividade econômica: serviços (12.621), comércio (6.628), indústria de transformação (3.719) e administração pública (6.789). Apesar de nos anos referenciados a população que vivia abaixo da linha de extrema pobreza ter sofrido um decréscimo importante, o índice de Gini, que mede a desigualdade na distribuição de renda, não sofreu grandes impactos, ainda que reduzido.
Minha tarefa foi mensurar o Exército de Reserva em Ilhéus (EIR) a partir das estatísticas disponíveis, de pouco espectro temporal, o que é apenas um fragmento do que esta análise busca oferecer à historiografia. A profunda cisão entre o mundo de trabalho das mulheres e dos homens na sociedade ilheense demarcam claramente suas faces enquanto identidades, com nuances mais ou menos acentuadas a partir do grupo do exército ativo (trabalhadores empregados) ou exército de reserva que estejam alocadas historicamente. A sociedade cacaueira do litoral sul baiano e sua estrutura agrária preservou durante mais tempo as rígidas superestruturas do patriarcado, clientelismo e relações de exploração. A escravidão, ferrenhamente negada pela elite proprietária gestada na região, teve papel fundamental nas relações de servidão e abusos da força de trabalho que se sucederam. O conservadorismo e a estratificação da sociedade pareciam prevalecer sobre o vultoso montante de capital e mais-valia apropriados nessas terras. Alguns trabalhos científicos, mas sobretudo a literatura regional capitaneada por Jorge Amado, tiveram importante papel de exposição desta perspectiva que ficava à sombra da história oficial.
A historiadora e pesquisadora Mary Ann Mahony expõe a leitura de Jorge Amado sobre o ciclo do cacau na região que contrariava o mito meritocrático que a elite se esforçava em perpetuar, marcando acentuadamente o antagonismo entre os trabalhadores rurais, organizações de trabalhadores e os proprietários. Para as mulheres e meninas que trabalhavam na lavoura, as violências e a desumanização não se resumiam ao romance amadiano, como se demonstra nos reclames trabalhistas sobre o setor rural à época.
Existe um conflito entre o capitalismo, que se vale da superestrutura patriarcal, e o patriarcado na esfera privada. Na ausência de um movimento feminista de trabalhadoras, por exemplo, em determinadas regiões de países dependentes, as mulheres que estão empregadas efetivamente permanecem sob o controle patriarcal da família e não alcançam nenhuma liberdade adicional. A oposição do patriarcado ao emprego das mulheres é expressa pelas restrições ao período de trabalho das mulheres casadas e a oposição dos sindicatos ao emprego de mulheres. O patriarcado moderno expressa um compromisso entre essas duas forças, o patriarcado privado e o capitalismo, permitindo que as mulheres ocupem um emprego remunerado, mas segregando-as e discriminando-as assim que chegam lá.
Situando a superexploração do trabalho como traço fundamental das economias dependentes sujeitas ao intercambio desigual, assentadas exclusivamente na sobrecarga de exploração do trabalhador, ao invés do desenvolvimento de sua capacidade produtiva, e sua estreita relação com o exército de reserva enquanto efeito imediato, se torna possível penetrar as contradições provocadas nas relações da classe trabalhadora mais a fundo. Saffiotti, pensadora que é muito cara ao desenvolvimento da perspectiva de classe e gênero, assim como as reflexões propostas neste trabalho, pondera que a superexploração se restringe às áreas onde permanecem traços da economia escravista, enquanto nos centros urbanos as legislações trabalhistas teriam inibido a apropriação da mais-valia absoluta. No entanto, as experiências de terceirização e precarização do trabalho nas cidades brasileiras nas últimas décadas acabam por revelar um tipo de dinâmica capitalista que nem mesmo a lei pôde conter.
As características próprias desse campo de trabalho para as mulheres, mais vulneráveis ao subemprego, à intensificação do trabalho, baixos salários, informalidade e longas jornadas com o acréscimo da reprodução, foram percebidas ao longo da análise. Embora a leitura das fontes esboce a precarização do trabalho para homens e mulheres, existem dissonâncias marcantes entre os dois grupos, tais como diferença salarial sobre a mesma função, pagamento parcial de direitos trabalhistas para os homens, maior extensão da jornada de trabalho das mulheres, insegurança da permanência do emprego e discriminações sobre gestantes.
O modelo conjugado do capitalismo e patriarcado, para os trabalhadores, sequer beneficia efetivamente os homens. Nem tampouco a maior participação das mulheres no exército de reserva. A presença das trabalhadoras no mercado de trabalho tende a baixar os salários dos trabalhadores, ou seja, é a classe capitalista que a principal beneficiária da competição sexual no mercado. Embora sejam as trabalhadoras que mais sofram por conta da baixa remuneração, todos os trabalhadores do gênero masculino em ocupações sem determinação sexual tendem a ter perda de salário porque as mulheres são discriminadas salarialmente. Portanto, a igualdade sobre o valor do trabalho é um imperativo político tanto para homens como para mulheres nestas sociedades. O município de Ilhéus, embora figure como um recorte desta condição latino-americana, é um exemplo muito claro da divisão sexual do trabalho e do peso que o patriarcado atrelado ás necessidades do capital conferem à vida das mulheres trabalhadoras. Embora este trabalho possa inspirar um olhar mais dedicado ao desenvolvimento de políticas públicas para a inclusão produtiva em âmbito de gênero ou mesmo o estimulo ao emprego de mulheres na estrutura formal de trabalho, a própria existência do exército de reserva reafirma a indispensabilidade da perspectiva de classe para o enfrentamento das estruturas de opressão.
É útil pensar a história como uma ferramenta política nesse sentido, porque também permite perceber as nuances de todos esses processos e, sobretudo, entender a configuração desses sistemas como fenômenos históricos, abandonando o estigma de eternos e imutáveis. Nesses fenômenos há forças em disputa, e a historiografia deve fazer o necessário para torná-las visíveis. Entrar em contato com o passado, especificamente com as lutas que ocorreram na transição para o capitalismo e seu assentamento, oferece a oportunidade de ver como este sistema exerce influência ao delinear e segregar as esferas público e privadas. A carga histórica e social que esse movimento deposita sobre as mulheres ainda carece de crítica social e política.
É preciso lutar, e permanecer lutando! Fora Temer! Rumo à Greve Geral!
Elisabeth Zorgetz é membro colaboradora do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina (HEDLA/UFRGS), graduanda em História (UESC) e escritora
FONTE: BLOG DO GUSMAO
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